“Seu corpo é um
campo de batalha”
[famoso cartaz pró-aborto, concebido pela ativista
feminista estadunidense
Barbara Kruger, em 1989].
Todos os dias, nas
ruas da cidade, mulheres são construídas.
Mulher princesa. Mulher
boneca. Mulher rosa. Mulher sobremesa. Mulher de cama e mesa. Mulher doce dócil
muda. Mulher morta. Mulher, uma obra em construção: Sorriso. Batom Boca Beijo.
Depiladores hidratantes sutiãs pregadores talheres vassoura gleidy sachê escova
progressiva inteligente. Silicone. Peito. Bunda. Coxa. 100% completa. Como você
gosta. Pronta para consumo imediato. Sarada. Turbinada. Preparada.
Plastificada. Espancada. Esquartejada. Morta. Jogada pros cachorros. na lagoa.
no lixo. Como você gosta?
Desculpe o transtorno,
estamos trabalhando para você.
Mulher. Ser humano
do sexo feminino capaz de conceber e gerar outro ser humano e que se distingue
do homem por essa característica. A mulher em relação ao marido. Esposa. Casar.
Amar e respeitar até que a morte os separe. Cuidar. Cozinhar. Limpar. Lavar.
Passar. Sujeitar. Sorrir. Servir bem para servir sempre. Agradar. Transar.
Mesmo sem vontade. Mesmo sem vontade apanhar. Compreender. Apanhar. Perdoar.
Apanhar. Esquecer. Esquecer. Esquecer. Morrer. Mesmo sem vontade.
Todos os dias, nas
ruas da cidade, mulheres são destruídas. Destruir. Dar cabo de. Aniquilar.
Ex-terminar. A cada 90 minutos, uma mulher é assassinada no Brasil. 70% das
mulheres mortas no país são vítimas de seus (ex) namorados, noivos, maridos.
10% desses homens são agentes da segurança pública. Amar e proteger. Conceição
de Maria, 43 anos. Morta a socos pelo marido, policial militar reformado.
Osailda, 45 anos, morta por envenenamento. O marido segue em liberdade, assim
como o assassino de Débora Souza, 20 anos, atendente do Maria Bonita de Ouro
Preto. Também em Ouro Preto, Amanda Linhares, 17 anos, foi ex-terminada pelo
ex-namorado, delegado de polícia da cidade. Fernanda Sante Limeira, 35 anos. O
ex-marido apontou a arma e atirou 4 vezes, sem que ela pudesse reagir. Em
Corinto, cidade em que minha mãe foi sistematicamente espancada pelo meu pai
sem que ninguém metesse a colher, Júlia, uma senhora de 80 anos, foi morta pelo
marido. No Sul, Natália, 16 anos, grávida de 3 meses, foi morta pelo namorado com
pelo menos 80 facadas, sem que ela eu você. sem que ninguém reagisse .
Iniciei
essa conversa tecendo o manifesto que, na performance Espaço do Silêncio, ofereço à leitura de passantes. Alterno esta
ação com o ato de imprimir, em um branco lençol de casal, cruzes vermelhas e,
sob cada uma delas, etiquetas. Cada etiqueta contém o nome de uma mulher vítima
de feminicídio, sua idade, profissão, e localidade em que o crime ocorreu. Além
disso, traz o modo como a mulher foi assassinada e o vínculo que seu assassino
mantinha com ela. Uma cruz vermelha cerra minha boca.
Nesse
ritual silencioso com que traço o meu legado de injustiças, cada etiqueta se
transmuta em uma espécie de lápide, construindo “um cemitério simbólico”. Meu olhar é duro, não há condescendência. Pois
cada um de nós precisa se haver com nossa parcela de responsabilidade por estar
no mundo.
De
fato, sinto que essa ação a cada dia vem cobrar de mim a minha parcela de estar
mergulhada de corpo inteiro neste mundo e de fazer dele minha matéria. Parafraseando
a performer e pesquisadora Eleonora Fabião (2008: 238): não somos nós,
performers, quem, ao evidenciar o corpo, deseja tornar evidente o corpo-mundo?
Espaço do Silêncio
é um gesto de denúncia e de indignação.
Aqui,
retomo a expressão da ativista feminista estadunidense Carol Hanisch – “o
pessoal é político” – para tratar dessa espécie
de grito, que sai de dentro do campo de batalha que é o meu corpo. [aqui,
parafraseando outra ativista feminista estadunidense, Barbara Kruger, em seu
famoso cartaz pró-aborto: Seu corpo é um campo de batalha]. De dentro do campo
de batalha que é o meu corpo sai esse grito, o grito de quem sente na carne as
violências decorrentes de uma performance de gênero imposta socialmente. E que,
quando não o sente diretamente, se propõe a ser palco para a voz de outras
tantas mulheres, silenciadas por uma estrutura machista, cruel: seja na forma
de neutralização de nossa voz política, seja na naturalização e romantização de
relações que violam ou aniquilam os nossos corpos.
Espaço do Silêncio
é uma performance de rua com cerca de 07 horas de duração. Nesse trabalho,
busco escutar a voz de mulheres que não foram ouvidas em tempo de evitar seu
aniquilamento. Das 365 mulheres que habitam cada lençol que “bordo” em minha
ação, muitas denunciaram as violências que sofriam. Muitas recorreram à
justiça, buscando proteção. Outras se calaram antes, ou foram silenciadas. Suas
vozes, desinvestidas de valor e de poder.
Não,
em um país em que se mata, em média, 13 mulheres por dia, esta não pode mais ser
tratada como uma questão de âmbito estritamente privado, doméstico. Não, essa
não é uma questão pessoal.
Constato,
a cada dia, que Espaço do Silêncio,
antes de tudo, me convoca a uma espécie de missão. Qual missão eu ainda tateio,
ainda tateio o que preciso fazer com o que faço. Pois essa performance tem se
revelado muito maior do que eu. Ela tem me revelado dimensões inusitadas e
alcances inesperados. E penso que realizá-la é a minha chance de conhece-la.
Nesse tatear, vou então a alguns fatos, que trago em notas sobre ela:
1ª
nota: Em 29 de julho deste ano, fui procurada via Messenger por Rosy Souza. Ela
me disse que havia visto, em compartilhamentos do facebook, materiais sobre a
performance. Nesses materiais, o nome de sua tia, Osailda de Sousa Coelho, de
45 anos, assassinada por envenenamento pelo marido, em Dom Expedito Lopes,
Piauí. Rosy me disse que ela havia visto o nome da tia e resolvido me procurar.
Rosy quer justiça, ela luta para que o crime, ocorrido em fevereiro de 2015,
seja julgado como tal e o feminicida – que permanece em liberdade – seja
punido. Ela luta para que o crime não seja esquecido e para que a memória de
sua tia não seja apagada.
2ª
nota: Em 03 de setembro, fui novamente procurada via Messenger. Agora, por uma
atriz e amiga que havia acompanhado, no final de 2015, a mesa de debates
“Feminicídio: o corpo da artista e a fabricação do corpo feminino”, da qual
participei na II Bienal Internacional de Teatro da USP. Na ocasião, tratei desta
ação, Espaço do Silêncio, e Vanessa
Biffon, a minha amiga atriz, tendo vivido recentemente uma perda, lembrou-se de
mim: no final de julho, Fernanda Sante Limeira, a irmã de uma grande amiga dela,
foi assassinada pelo ex-marido e o desejo de Vanessa era que eu fizesse minha
ação também em memória de Fernanda.
3ª
nota: Em 07 de setembro deste ano, junto ao Grito dos Excluídos, realizei, na
Praça 7, a performance em memória de Fernanda. Nesse dia, durante a realização
da ação, uma mulher, Rita, quis falar comigo: ela queria me dar o nome da irmã,
para que ela também figurasse em meu lençol. A irmã, Maria do Carmo Souza
Galli, foi assassinada pelo marido há mais de 30 anos e ele nunca foi nem
sequer indiciado: o crime foi visto como suicídio, embora um laudo pedido pela
família tenha comprovado que ela foi morta com 02 tiros nas costas.
Esses
recentes acontecimentos têm me mostrado que Espaço
do Silêncio não é só um gesto de denúncia e indignação. Não é só um gesto
meu. É também espaço de memória para outras mulheres, um grito que ecoa, que
repercute em outros corpos.
Qual a eficácia da ação na cena
contemporânea?
Essa
questão, lançada pela pesquisadora cubana Ileana Diéguez durante o Colóquio
Pensar a Cena Contemporânea, tem sido mote para muitas das discussões e práticas
em torno das possíveis relações entre arte e política ou, mais especificamente,
entre as artes da presença e a ação política, que realizo dentro do projeto de
pesquisa “Corpos Estranhos, Espaços de Resistência”, desenvolvido junto aos
coletivos NINFEIAS (Ouro Preto) e Obscena (aqui, em BH).
O
projeto investiga ações performativas e escritas performadas (em suas múltiplas
dimensões e suportes) que tem como eixo as diferentes corporeidades e práticas
espaciais produzidas nas relações de enfrentamento e convívio ocorridas no
espaço urbano. Interessam-me, sobremaneira, as corporeidades vistas a partir
das questões de gênero, sendo objeto de
investigação as práticas parodísticas e de (auto)invenção de corpos que visam
perturbar as lógicas de padronização e espetacularização das subjetividades e
colocar em xeque discursividades e representações que materializam os corpos, ou
seja, é objeto de experimentação as práticas que desejam evidenciar os efeitos
de poder que pesam sobre nossos corpos, tornando-os inteligíveis ou, ao
contrário, tornando-os corpos invisíveis ou mesmo abjetos:
Nesse sentido, o que constitui a fixidez
do corpo, seus contornos, seus movimentos, será plenamente material, mas a
materialidade será repensada como o efeito do poder, como o efeito mais
produtivo do poder. [...] O ‘sexo’ é, pois, não simplesmente aquilo que alguém
tem ou uma descrição estática daquilo que alguém é: ele é uma das normas pelas
quais o ‘alguém’ simplesmente se torna viável, é aquilo que qualifica um corpo
para a vida no interior do domínio da inteligibilidade cultural (BUTLER, 1999,
p. 111).
Desse
modo, vejo, nas articulações entre ativismo e performance, uma possibilidade de
considerar a prática performática como uma nítida colocação/tomada de posição
de corpos políticos marcados pela diferença e, talvez, marcados pela opressão e
pela invisibilidade: o corpo da mulher, mas também o corpo dx negrx, dx
transgênerx, e tantos, tantos outros corpos possíveis! Nesse sentido, considero
que a performance pode, muitas vezes, alargar as fronteiras de sua ação
política e flertar diretamente com os movimentos sociais, performatizando-os.
Esta é, a meu ver, a força da performance:
turbinar a relação do cidadão com a polis; do agente histórico com seu
contexto; do vivente com o tempo, o espaço, o corpo, o outro, o consigo. Esta é
a potência da performance: deshabituar, des-mecanizar, escovar a contra-pêlo.
Trata-se de buscar maneiras alternativas de lidar com o estabelecido, de
experimentar estados psicofísicos alterados, de criar situações que disseminam
dissonâncias diversas: dissonâncias de ordem econômica, emocional, biológica,
ideológica, psicológica, espiritual, identitária, sexual, política, estética,
social, racial... (FABIÃO, 2008: 237).
Evidentemente,
não é exclusividade da performance a possibilidade de “disseminar
dissonâncias”, até mesmo porque ela não escapa da institucionalização ou
mercantilização de sua produção. No geral, esta tem sido a
tarefa de toda arte que se pretende política. No campo das artes da presença,
me interessam especialmente as diversas modalidades cênicas que, escapando de
uma taxinomia teatral mais tradicional, experimentam as relações entre arte e
vida, estética e ética, imbricando criação artística e ato ético.
Dessa
perspectiva, sem dúvida nenhuma é possível também alinhar a essa discussão
aquilo que Ileana Diéguez chama de performances ou “ações cidadãs”, ou seja,
“os gestos simbólicos que colocam vontades coletivas na esfera pública e
constroem de outras maneiras seu ser político. Não tendo um fim estético,
produzem uma linguagem que absorve a percepção e suscitam olhares a partir do
campo artístico”.
Essas ações cidadãs podem abarcar desde as marchas silenciosas das Mães de
Maio, na Argentina, até a Praia da Estação e outras ações ativistas, ligadas à
militância política dos movimentos sociais e ao cyber ativismo.
É
importante destacar que, embora a aproximação entre performance e ativismo não seja
tão recente – remontando às décadas de 50 e 60 – parece haver, atualmente, um
estreitamento desses laços. Se por um lado, como salienta Diéguez, podemos
notar o “ressurgimento de uma politização na arte, através de práticas
carnavalescas, lúdicas e corporais”, por outro lado, é bastante perceptível “o
desenvolvimento de uma atitude estetizante das práticas políticas” de diversos movimentos
sociais – do feminismo e do ativismo LGBTT ao movimento negro – fazendo com que
a experimentação expressiva do corpo possa acontecer em variados níveis. Na organização
da Marcha das Vadias, só para citar um exemplo, é possível observar da
construção de um corpo coletivo à individuação das marcas de opressão (ou de
reivindicação de liberdade) nos corpos que performam múltiplos discursos sobre
a mulher. Pois pensar o corpo da mulher já não nos coloca inúmeras questões,
tais como: o que é “ser mulher”? O que a define? O que define um corpo como
feminino? O que pode o corpo de uma mulher? E o que não pode?
Voltando
então à questão colocada por Ileana Diéguez...
Ao
tratar da efetividade da ação na cena contemporânea, ela o faz colocando em
xeque, inicialmente, o sentido desses 03 termos: efetividade, ação e cena
contemporânea.
No
que tange à cena contemporânea, ela questiona, em primeiro lugar, que tipo de
cena se tem em mente quando usamos esse termo, uma vez que “a noção de “cena”
se deslocou dos campos artísticos e cada vez mais tem sido considerada como
lugar de onde se observam ou onde se refletem realidades sociais, históricas e
políticas” como, por exemplo, nas
expressões “a cena hip hop” ou “a cena política atual”. Em seguida, Diéguez
discute em que sentido “ação” está sendo considerada: “a ação como execução
performática ou teatral, ou como acontecimento artístico em geral? Ou a ação
como ato que compromete a unidade do ser”, ou seja, a ação como um ato em que o
sujeito esteja eticamente engajado?
E, por último, ela se pergunta em que sentido uma ação pode ser considerada efetiva, ou seja, “para quem ou para o
que [ela] é efetiva e a partir de quais critérios – pragmáticos, artísticos,
éticos – pode se medir esta ‘efetividade’” da ação?
Com
essas questões como horizonte, Diéguez vai mergulhar em algumas reflexões
levantadas pelo filósofo russo Bakhtin para discutir as
aproximações e limites entre arte e vida: “quando nos perguntamos se uma ação
na arte pode ser concebida e sustentada como um ato na vida”. Continuando, ela salienta
que, no projeto filosófico de Bakhtin, o ato ético é resultado da interação
entre dois sujeitos distintos, não como relação formal, mas no sentido de uma
responsabilidade concreta que condiciona o ser-para-outro.
Ainda
segundo Diéguez, essa noção de implicação é o fundamento real do ato que
implica também a prática artística como
forma estética do ato ético. No entanto, nunca como uma ação técnica ou,
muito menos, como um espetáculo do corpo.
Em
relação ao corpo do performer, ela salienta que o corpo do atuante (seja ator
ou praticante)
...não
é somente uma presença material que executa uma partitura performativa dentro
de um marco autoreferencial e estético. [...] A presença é um ethos que assume
não somente sua fisicalidade, mas também a eticidade do ato e as derivações de
sua intervenção. A condição de performer enfatiza uma política da presença ao
implicar uma participação ética, um rasgo em suas ações sem o encobrimento das
histórias e personagens dramáticos.
Ou
seja, para Diéguez, a presença abarca não só o aspecto físico, material, do
performer, mas também a responsabilidade ética que ele toma para si ao
colocar-se em um espaço cênico, assumindo todos os riscos daquilo que Eduardo
Pavlovsky chama de “ética do corpo”.
Essas
questões a Diéguez coloca para abordar algumas experiências das artes do corpo
que aconteceram em “realidades em que se violam, somem ou aniquilam corpos”. Ou
seja, para pensar experiências artísticas atravessadas pelo contexto histórico
em que o corpo dx artista está não somente instalado, mas diretamente implicado.
Afinal,
o que pode um corpo mover?
Uma experiência, por definição, determina
um antes e um depois, corpo pré e corpo pós-experiência. Uma experiência é
necessariamente transformadora, ou seja, um momento de trânsito da forma,
literalmente, uma trans-forma. As escalas de transformação são evidentemente
variadas e relativas, oscilam entre um sopro e um renascimento. Programas criam
corpos – naqueles que os performam e naqueles que são afetados pela performance
[...]. Corpos são vias, meios. Essas vias e meios são as maneiras como o corpo
é capaz de afetar e de ser afetado. O corpo é definido [por Espinosa] pelos
afetos que é capaz de gerar, gerir, receber e trocar. (FABIÃO, 2008, pp.
237-238).
Referências: