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O NINFEIAS, núcleo de pesquisa coordenado pela pesquisadora e performer Nina Caetano - professora do departamento de artes cênicas da UFOP - visa a investigação de teorias feministas e práticas performativas. Funciona como uma rede colaborativa, instigando a provocação artística, encontros e trocas entre estudantes da Graduação e da Pós Graduação da UFOP e a comunidade ouropretana.
Atualmente o NINFEIAS é composto por Amanda Marcondes, B. Campos, Caroline Andrade, Caroline de Paula, Caroline Moraes, Danielle dos Anjos, Giulia Oliva, Jackeline Análio, Keila Assis, Marcinha Baobá e Renata Santana.

sábado, 24 de fevereiro de 2018

Músicas Machistas, Cultura do Estupro e Empoderamento de Mulheres

Sempre tiveram músicas machistas, né? Não somente no funk ou em outros gêneros originalmente periféricos, como o samba em sua raiz. Mas também na bossa nova, nas músicas tradicionais e no rock, nacional e estrangeiro. Vou me ater a tratar aqui da música brasileira, que é do contexto em que vivo e, via de regra, a música que, como DJ, toco.
E quando falo de distinção de graus de machismo, não é pra justificar o machismo, dizendo que é isso mesmo, que a música reflete o seu tempo... sim, óbvio. Então a gente vai ter “Ai que saudades da Amélia”, que é machista pra caramba: ela pensa a mulher dentro da dicotomia santa/puta e também em uma mulher domesticada como o ideal feminino. Mas é bem diferente, ainda, de uma música como "Mulher Indigesta" (Noel Rosa)  – "Mas que mulher indigesta, indigesta! /Merece um tijolo na testa"  – ou do samba de roda “Se essa mulher fosse minha”: "Se essa mulher fosse minha / Eu tirava do samba já, já / Dava uma surra nela / Que ela gritava: Chega / Chega / Oh meu amor / Eu vou-me embora da roda de samba eu vou"... No segundo caso, não há nem implícito. A(s) música(s) incita(m) diretamente a violência.
A mais recente polêmica é com o funk “Surubinha de leve”**, do MC Diguinho. Sempre fico um pouco cabreira com a crítica ao funk, porque às vezes percebo que tá misturado também um lugar de classe e de raça, sabe? Mas não tem como negar que essa música tem uma letra violenta, que incita ao estupro né? Penso que a cultura do estupro não tá só aí não, acho que está também na ideia geral da mulher como propriedade e objeto, o que pode levar, inclusive, a outras violências como feminicídio. Também está na sexualização precoce de meninos que já aprendem, ainda crianças, a ver mulher como pedaço de carne, o que é evidenciado muito bem no clipe do MC Doguinha (“Vamos Fazer Sacanagem”). Mas se vamos falar de funk, a gente precisa olhar o outro lado também, quando a mulher assume controle da sua sexualidade e do seu desejo.
Posso citar as clássicas “A porra da buceta é minha” (Deise Tigrona), “Larguei do meu marido virei puta” (Gaiola das Popozudas) e “Estaladinha” (Mulher Filé), além das músicas da dona do meu set, MC Carol: “Meu namorado é o maior otário” ou “Propaganda enganosa”. Ah, sem contar “100% Feminista”, que a maravilhosa divide com Karol Conká. Ainda no funk, gosto de citar MC Jessica, por causa da resposta bem paródia a um pagodão dos anos 90 (do grupo Só pra Contrariar): “Tô fazendo amor com a favela toda”!
Tem muito moralismo classe média (com dificuldade em compreender uma linguagem periférica) que confunde isso com objetificação da mulher. No meu entendimento, é muito diferente a mulher dizer o que gosta e o que quer, e se afirmar como dona de seu corpo, e essa ideia da mulher como objeto, inclusive do lar, coisa que está na música brasileira não é de hoje. Basta ouvir um samba como “Minha Nega Na Janela” (Germano Mathias, 1957) – que, além de tudo, é racista: "Minha nega na janela/ Diz que está tirando linha / Êta nega tu é feia / Que parece macaquinha / Olhei pra ela e disse / Vai já pra cozinha / Dei um murro nela / E joguei ela dentro da pia / quem foi que disse que essa nega não cabia?"  – ou, mais recentemente, “Mulher não manda em homem” do grupo de pagode Vou pro Sereno, pra perceber isso.
Esse processo de objetificação da mulher em nossa cultura patriarcal – em que ela é percebida como “propriedade” masculina – conduz à ideia de que o homem tem direito de dispor dela como quiser e, não somente abusar dela ou agredi-la sexualmente, mas também agredi-la fisicamente, espancá-la e, inclusive, exterminá-la, caso a mulher não “corresponda” ao seu “amor” ou às suas vontades.
É o que expressam músicas como “Se te agarro com outro te mato” (Sidney Magal, 1977)  ou, ainda, o samba “Faixa Amarela”, cantado tranquilamente por Zeca Pagodinho: “Sem falar na tal faixa amarela/ Bordada com o nome dela/ Que eu vou mandar pendurar/ Na entrada da favela/ Mas se ela vacilar, vou dar um castigo nela/ Vou lhe dar uma banda de frente/ Quebrar cinco dentes e quatro costelas/ Vou pegar a tal faixa amarela/ Gravada com o nome dela/ E mandar incendiar/ Na entrada da favela”.
Preocupantes também são músicas como “Vida de Balada”, da dupla sertaneja Henrique e Juliano, que romantiza relações abusivas, perseguição, em que a vontade e a escolha da mulher não importam: "Tô a fim de você/ E se não tiver, você vai ter que ficar/ Eu vim acabar com essa sua vidinha de balada/ E dar outro gosto pra essa sua boca de ressaca/ Vai namorar comigo, sim!/ Vai por mim, igual nós dois não tem/ Se reclamar, ce vai casar também”. Ou a criminosa "Noiva-cadáver"***, que romantiza o feminicídio em um país em que são mortas cerca de 15 mulheres por dia, 70% assassinadas por homens que diziam amá-las. Enfim, eu poderia citar ainda inúmeras outras, desde a coisificante e violenta canção infantil “Maria Chiquinha” (cantada pela dupla Sandy & Júnior, ainda crianças) até as músicas do Raimundos (tem mais de uma) ou do Velhas Virgens: a lista é infinita!
Mas é porque, precisamente, a música reflete o seu tempo, e isso significa também mudança, transformação, evolução, é que a gente tem, hoje em dia, rappers como Criolo e Mano Brown rediscutindo músicas machistas que compuseram há poucos anos atrás, refazendo letras.
Mas é óbvio (pelo menos pra mim) que eles não estão fazendo isso à toa ou porque são “bonzinhos”. É principalmente porque estão sendo questionados, colocados em xeque. Porque a mulherada não tá aceitando mais: estamos criticando e reivindicando outros olhares sobre nós e nossos corpos. Basta! Não queremos mais continuar sendo mortas, abusadas, agredidas!
É também por isso, porque a música reflete o seu tempo, que penso que a gente precisa prestar mais (muita) atenção na produção musical de mulheres. É ato de resistência! Seja produzindo música – sem que, necessariamente, esteja se pensando em uma agenda feminista –  seja assumindo, em suas letras, posições de denúncia e de confronto deste machismo tão arraigado em nossa cultura.
No rap, por exemplo, temos muitas mulheres fodas, desde a ativista feminista Luana Hansen – que fez “Minha xota te ama”, uma versão lésbica genial do funk “Deu onda” – até a rapper mais pop do Brasil, Karol Conká, com o hino “Lalá”, em que critica o pouco cuidado masculino com o sexo oral e com o prazer da mulher. Tem ainda Rimas & Melodias e, em Belo Horizonte, temos Tamara FranklinZaika dos Santos, Sarah Guedes, só pra citar algumas das que mais admiro.
Mas também no coco, no samba, na MPB de um modo geral, no rock, temos mulheres que tão propondo a diferença. Aíla, Letrux, Karina Buhr, Alessandra Leão, Larissa Luz, Pitty... E não posso deixar de citar a gloriosa rainha Elza Soares – resistência na vida! – com o hino feminista, “Maria da Vila Matilde”, do fodástico álbum Mulher do Fim do Mundo (eleito pelo New York Times como um dos 10 melhores álbuns de 2016).
Só para dar um último exemplo, vou lembrar de um coco lindo de D. Aurinha, "Seu Grito", que denuncia um feminicídio. Ele fala assim: "Seu grito silenciou/ lá no alto em Olinda/ era uma mulher tão linda/ que a natureza criou./// Ela foi morta/ no meio da madrugada/ com um tiro de espingarda/ pela mão do seu amor./// Fico orando/ a Deus peço clemência/ com toda essa violência/ o mundo vai se acabar./// Moro em Olinda/ canto coco com amor/ luto contra a violência/ porque mulher também sou./// Eu sou guerreira mulher/ mulher guerreira eu sou/ eu canto coco em Olinda/ e canto com muito amor."
Quero terminar meu texto com esse coco que eu amo, por causa da afirmação
de D. Aurinha: luto contra a violência porque mulher também sou.
Somos mulheres e estamos produzindo música. Escutem-nos.

Quem quiser ouvir mais e conhecer com calma outras mulheres fodas, tem as minhas playlists feministas no soundcloud, DJ Shaitemi Muganga.


**Após denúncias de que "Surubinha de Leve" fazia apologia ao estupro, a música foi retirada da web, por isso a ausência de link.

***Após denúncias, o vídeo foi removido do youtube pelo compositor de Noiva-Cadáver, Rafa Kamaitachi.

sábado, 17 de fevereiro de 2018

Entrevista para o Programa Conexão - Canal Futura

edit: [entrevista preparatória para o programa "Empoderamento Feminino e cultura do estupro na música", que foi ao ar no dia 22/02/2018)

1) O que é o NINFEIAS?
O NINFEIAS é um Núcleo de INvestigações FEminIstAS que coordeno, desde 2013, em Ouro Preto e que pesquisa as relações entre performance e feminismo. O núcleo é ligado à UFOP – Universidade Federal de Ouro Preto, por meio da minha atuação junto ao PPGAC – Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas do qual sou professora.
Atualmente pertencem ao NINFEIAS, além de mim, Carol Reis, Karla Ribeiro, Lívia Maria (estudantes do Curso de Artes Cênicas) e Mayra Pietrantonio (estudante de Museologia). A gente vem criando experimentos cênico-performativos livremente inspirados na obra “Monólogos da Vagina”, além de atuar junto à comunidade ouro-pretana por meio de várias ações extensionistas, que vão desde oficinas de Educação pela Igualdade (ministradas a profissionais da educação e estudantes da rede pública da cidade) até rodas de conversa sobre Cultura do Estupro, que ocorrem em diversos lugares, para diferentes públicos. Fazemos também semanas temáticas, como a semana AfroFeminista – que realizamos de 20 a 25 de novembro de 2017 e teve como tema principal o protagonismo da mulher negra – e sessões de cinema, entre outras atividades.

2) Como surgiu essa criação, essa ideia?
Desde 2008 que pesquiso, em Belo Horizonte, essa relação entre performance e feminismo (junto ao obsCENA – agrupamento independente de pesquisa cênica). Em 2011, após a finalização do meu doutorado, retorno a Ouro Preto com muito desejo de aproximar essa investigação da realidade da cidade, extremamente conservadora e patriarcal. Então, juntei-me a outra pesquisadora – Thaiz Cantasini, artista fenomenal e educadora – e fundamos o NINFEIAS com o intuito de agregar outras mulheres que tivessem interesse em pensar ações de combate à violência que diariamente sofremos.

3) Nossa pauta surgiu a partir da discussão sobre a música "surubinha de leve". Como você recebeu essa música?
Então... Sempre tivemos músicas machistas no Brasil... São reflexo de nossas realidades sociais, do modo como nossa cultura vê a mulher. E isso, evidentemente, não somente no funk ou somente em gêneros populares, como o samba em sua raiz. Mas também na MPB e no rock, nacional e estrangeiro.
Sempre fico um pouco cabreira com a crítica ao funk, porque às vezes tá misturado também um lugar de classe e de raça, sabe? Mas não tem como negar que essa música tem uma letra violenta, que incita à violência né? Penso que a cultura do estupro não tá só aí, acho que tá na ideia geral da mulher como propriedade e objeto, o que pode gerar, inclusive, outras violências como feminicídio. Acho que tá também na sexualização precoce de meninos, que já aprendem ainda crianças e ver mulher como pedaço de carne, o que evidencia muito bem o clipe do mc Doguinha.
Mas se vamos falar de funk, a gente precisa olhar o outro lado também, quando a mulher assume controle da sua sexualidade e do seu desejo. E, nesse sentido, eu poderia citar várias mulheres e músicas que fazem parte deste contraponto: “A porra da buceta é minha” (Deise Tigrona), “Larguei meu marido virei puta” (Gaiola das Popozudas) e “Estaladinha” (Mulher Filé), além das músicas da rainha do meu set, Mc Carol: “Meu namorado é o maior otário” ou “Propaganda enganosa”. Gosto de citar também a MC Jessica, por causa da resposta bem paródia a um pagodão dos anos 90 (do grupo Só pra contrariar): “Tô fazendo amor com a favela toda”!

4) Esse movimento de mulheres que cantam e escrevem letras sobre o empoderamento feminino é algo novo ou sempre existiu? Porque lembramos de músicas feitas por antigas mulheres que falavam de família, amor etc... Hoje, as letras falam mais sobre o empoderamento, como no caso da música da Lila que fala "não é não". É algo atual?
Eu diria que a gente conhece pouco ainda a produção feminina, ela ainda é pouco valorizada, embora tenhamos mulheres compondo e cantando músicas há décadas... Faz parte da minha pesquisa o que chamo de “discotecagem feminista”, em que procuro conhecer e tocar músicas de mulheres. Pra mim, mulher fazendo música já é um ato de resistência – ainda que não estejam, necessariamente, pensando em uma agenda feminista. Mas muitas vezes, as mulheres estão assumindo, em suas letras, posições de denúncia e de confronto deste machismo tão arraigado em nossa cultura.
No rap, por exemplo, temos muitas mulheres fodas, desde a ativista feminista Luana Hansen – que fez uma versão lésbica genial do funk “Deu onda” – até a rapper mais pop do Brasil, Karol Conká, com o hino “Lalá”, em que critica o pouco cuidado masculino com o prazer sexual da mulher. Tem ainda Rimas & Melodias e, em Belo Horizonte, temos a Tamara Franklin, a Zaika dos Santos, Sarah Guedes, só pra citar algumas das que mais admiro.
Mas também no coco, no samba, na MPB, temos mulheres que tão propondo a diferença. Aíla, Letrux, a dona da porra toda e também do meu coração, Elza Soares....  Só pra dar um último exemplo, vou lembrar de um coco lindo, que eu amo, da D. Aurinha do Coco. Esse coco, “Seu Grito”, denuncia um feminicídio. Ele fala assim: Seu grito silenciou/ lá no alto em Olinda/ era uma mulher tão linda/ que a natureza criou./// Ela foi morta/ no meio da madrugada/ com um tiro de espingarda/ pela mão do seu amor./// Fico orando/ a Deus peço clemência/ com toda essa violência/ o mundo vai se acabar./// Moro em Olinda/ canto coco com amor/ luto contra a violência/ porque mulher também sou./// Eu sou guerreira mulher/ mulher guerreira eu sou/ eu canto coco em Olinda/ e canto com muito amor."
Quem quiser ouvir mais e conhecer com calma outras mulheres fodas, tem os meus setlist no soundcloud, DJ Shaitemi Muganga:  .