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O NINFEIAS, núcleo de pesquisa coordenado pela pesquisadora e performer Nina Caetano - professora do departamento de artes cênicas da UFOP - visa a investigação de teorias feministas e práticas performativas. Funciona como uma rede colaborativa, instigando a provocação artística, encontros e trocas entre estudantes da Graduação e da Pós Graduação da UFOP e a comunidade ouropretana.
Atualmente o NINFEIAS é composto por Amanda Marcondes, B. Campos, Caroline Andrade, Caroline de Paula, Caroline Moraes, Danielle dos Anjos, Giulia Oliva, Jackeline Análio, Keila Assis, Marcinha Baobá e Renata Santana.

quinta-feira, 28 de agosto de 2014


Levar a sério o que a Tradição
 (quanto peso e silêncio cabem numa palavra que rima com Opressão?)
 transformou em Insignificância.



                                                         Foto: Biel Machado



Tentativa de Prólogo 1 

Eu, Thaiz Barros Cantasini, mulher construída, lapidada pelos padrões de nuances advindas do cor-de-rosa que combinaram com os adereços de meu primeiro quarto; que aprendi na escola – ainda antes de saber a escrever e ler – que a palavra “mulher” rima com “colher”; que a saia quando um pouco mais curta exige um cuidado e esforço significativos de quem a traja no ato de sentar em público, principalmente ao lidar com as próprias pernas, sufocando-as rente ao sexo; que aprendi, neste mesmo processo de lapidação cor-de-rosa-chumbo, que meus primos brincam na varanda e podem ficar na calçada da casa da avô, enquanto nós, primas, carregando o peso do nosso “A” ao final do laço consangüíneo, podemos brincar dentro de casa, sob a fiscalização esporádica de outras mulheres tias, mães, avós, que dividiam assuntos no espaço reduzido entre a sala de TV e a cozinha... Venho dar o meu depoimento sobre o que estas linhas impregnadas no meu corpo (pequena cela, pequena masmorra é seu desenho) redesenharam a partir do contato com outras mulheres, com coletivos feministas que integrei até então, e de um possível vislumbre de liberdade e igualdade de gênero (ou a quebra definitiva dessa linha rente que nos divide tão binários).
Quando minha mãe partiu, o pai, já de imagem oculta pela cultura do botar-o-pão-na-mesa, não correspondia á figura que eu construí nos contos-de-fadas que ouvia de minha mãe até pegar no sono, ainda bem menina. Fugi de casa várias vezes, perdi as contas: “Ela não tem conserto”, a família dizia (risos). Olha, o que sei é que não estou aqui prá agradar, já tenho a carga de ser.  E ser não pode ser imposto. Eu escolhi não matar a minha poesia.  Bom, hoje, eu e meu pai somos amigos. Re-emendamos, e cheios de resquícios e pré-conceitos conversamos, nos ouvimos, choramos um bocado. Uma longa história, que tem até ido bem. Vamos adiante. A escrita não dá conta da vida.

Tentativa de Prólogo 2 

Eu, Thaiz Barros Cantasini, 34 anos, fragmentada, não acredito mais em príncipes encantados. Feminista, artista educadora, mãe, filha, neta, bisneta. Corpo biológico: mulher. Corpensamento:  Gente capaz de experimentar e reinventar.  Troquei o curso de Direito, imposto pelo meu pai, pelo curso de Artes Cênicas em Ouro Preto-MG, que concluí em 2013. Mas vamos aos fatos, a protagonista desta história não sou eu. A protagonista dessa história é uma minoria inteira.
Ontem, depois da ação “Dançar é uma Revolução – que mais nenhuma mulher seja estuprada”, que aconteceu em decorrência de uma série de depoimentos de abusos sexuais e estupros cometidos dentro de repúblicas de estudantes de Ouro Preto - depoimentos estes, cedidos e enviados pelas vítimas e lidos preservando o anonimato e devido sigilo por nós do NINFEIAS-Núcleo de Investigações Feministas – senti-me fortemente afetada por estas mulheres e relatos que saíram de dentro de seus depoimentos e se fizeram presentes nas imediações da Estação ferroviária de Ouro Preto – onde ocorreu a ação – por meio da nossa voz, da escuta suscitada no ponto de ônibus que fica ao lado da Estação, pelo olhar atento do policial que ouvia calado e concordava com um movimento de cabeça, pela solidariedade dxs motoristas que paravam seus veículos para ler em um flyer que tinha intitulado  “Você não é culpada”.
Não consegui dançar durante a ação. Um nó na garganta, uma espinha de peixe na goela. Meu corpo, então, providencialmente, criou uma dança interna, uma dança silenciosa, ativa. A trilha sonora foi a dos gritos que ecoavam dos relatos.  Eles são fortes, insuportáveis para os ouvidos e para quem os profere. Eu lia, mas também engolia. Engolia a seco. No conteúdo, transas forçadas durante o sono de mulheres que beberam o famoso “batidão”, feito com álcool misturado a qualquer remédio que dê um belo apagão na vítima que exagere na dose.  “Transei com você a noite inteira. Fácil. Você não se lembra”.

Chega de Prólogo - Desenvolvimento:

A garrafa, 
o copo, 
o coRpo: 
neste contexto, a mesma COISA. Objetos que servem para encher com álcool até o gargalo, recipientes sem vontade, que não tem memória, que irão juntar as roupas que alguém retirou  e que irão embora cobertas pelo medo e pela vergonha.  E silêncio. (Homens que abusam sexualmente de mulheres sempre contam com o nosso silêncio) O silêncio não é uma coisa. O silêncio é uma grande desgraça, um fantasma, um demônio sustentado pela culpa que aprendemos a ter desde meninas. Pandora, abra essa maldita caixa!

O abuso sexual não acontece se uma moça esfrega uma garrafa pelo corpo. Um abuso sexual acontece quando um corpo coage outro e o faz vítima de uma vontade não acordada. Egoísta, criminoso, invasivo, corrosivo. Em alguns depoimentos, as vítimas que não conseguiram se lembrar do crime contra elas cometido, se queixavam de fortes dores no quadril no dia seguinte.  Eu também senti estas dores enquanto lia os depoimentos. Estas dores são minhas, suas, estamos todas nesta roleta russa do corpo, quando será a sua vez? O que você vai fazer enquanto a sua hora não chega? Eu luto por um desvio dessa prática, pelo fim dela. Eu r-e-p-u-d-i-o.

 Depois da ação, que cerrou o meu dia com a leitura de uma carta endereçada à Reitoria da Universidade Federal de Ouro Preto e lida coletivamente in loco, andei pela cidade durante três horas. Sozinha. Essa pausa foi importante. Cheguei em casa e resolvi abrir o Código Penal Comentado de Damásio de Jesus que eu havia abandonado desde 2001. Abri. Página 225. Capítulo XXI. Ele falava sobre o conceito de Conduta, suas características e elementos. Grudei os olhos: “A conduta se refere ao comportamento do homem, não dos animais irracionais. O ato do homem, por sua vez, só constitui condita como expressão individual de sua personalidade”. E mais: “Atuação positiva ou negativa de um ato de vontade no mundo exterior (manifestação da vontade por meio de um fazer ou não fazer). E mais: “Ausência de Conduta:se a vontade constitui elemento da conduta, é evidente que esta não ocorre quando o até é involuntário. De acordo com Jolivet, o ato voluntário: 1) Deve ser espontâneo, isto é, proceder de uma tendência própria e interior à vontade; se não, é COAGIDO e FORÇADO. 2) O fim deve ser conhecido como tal; se não, o ato não é voluntário, mas natural ou instintivo, pois procede de um princípio CEGO, como é o caso da atividade vegetativa ou animal”.

Artes Cênicas em consenso com o Direito:

Queremos uma mudança de conduta, isso será decorrente de uma percepção maior do espaço urbano e de quem transita por ele – isso inclui a universidade, claro. Parece urgente. Ocupemos, mulheres. Mandemos nosso recado. 

Vislumbrar é estar vivo:

Por um olhar atento, por respeito à mulheres e meninas, por sensibilidade de homens e meninos. Para que seja papo sério o que já soa como insignificante. Por uma resposta e ação da Reitoria da Universidade Federal de Ouro Preto. Por minha filha e minha neta. Por sua filha e sua neta. Por tod@s @s amig@s. Por você que optou em não ser mãe. Por CONDUTAS de pessoas capazes de amar, pelo consenso e pela ânsia coletiva de mudanças, por minorias respeitadas, por mais feminismo em Ouro Preto. Por silêncios estilhaçados. Pela transformação afetuosa advinda da coragem de uma nova experiência com o mundo, com a cidade, com a república de estudantes, com a sua casa e com quem a visita.  Pelo pedido de desculpas, pela pena aplicada ao crime. Por atos que não justifiquem mais um pedido de desculpas. Pela denúncia do abuso sexual cometido em 1998, 1999, 2000, 2001, 2002, 2003, 2004, 2005, 2006, 2007, 2008, 2009, 2010, 2011, 2012, 2013, 2014. São dezesseis anos para a prescrição do crime. 
Pelo grito alerta. 
Pela força feminista nas ruas. 
Por mulheres empoderadas. 
Por homens e mulheres que vejam para além da questão republicana-estudantina, para além da irmandade e consagração do hino macho-alfa. 
Pelo fim da “lei do mais forte” e a do “sexo frágil”.
Desconstrua. Isso não é culpa dos tijolos das casas de estudantes, isso é reprodução de uma tradição torpe, criada por g-e-n-t-e. Se você mora numa casa assim, questione. Mude. Dialogue. 
Não seja burro-de-carga de um pensamento opressor. 
Des-hierarquilize suas relações.
E tire essa mão daí que eu não permiti. Alto lá, rapaz!


Denuncias podem ser feitas pela Ouvidoria do Ministério Público MG:
Grupo de Apoio à mulheres e meninas:


Thaiz Cantasini
Licenciada em Artes Cênicas pela Universidade Federal de Ouro Preto UFOP

Integrante do Coletivo NINFEIAS-Núcleo de INvestigações FEminIstAS

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