Thaiz Cantasini
Sinto-me vitoriosa por ser separada e ter caçado meu próprio canto. Adoro minha casa, a varanda sem horário, o pé de manjericão, meu pisca-pisca ligado na sala sem ser Natal. A casa é alugada, mas é o melhor que posso fazer por mim e por minha filha agora. Gostamos tanto daqui!
Sinto-me vitoriosa por ser separada e ter caçado meu próprio canto. Adoro minha casa, a varanda sem horário, o pé de manjericão, meu pisca-pisca ligado na sala sem ser Natal. A casa é alugada, mas é o melhor que posso fazer por mim e por minha filha agora. Gostamos tanto daqui!
Mas não se engane,
leitorx: a vida não deixou de esbofetear e de rir da minha cara. Mas agora com
uma diferença: sei responder, afiei minha língua nessa pedra-de-amolar (que é o
cotidiano) e apurei o meu silêncio ao ponto de tornar-me completamente indiferente
ou no mínimo piedosa quando a vida resolve ser cínica, arrogante ou babaca
comigo. Uso a palavra vida aqui como uma metáfora.
Foi importante ter
estudado e ainda estar estudando. Eu tenho 35 anos e faço mestrado em Artes
Cênicas.
Estudando pude conhecer
outras mulheres, trocar conhecimentos, revigorar vida e arte, livros e con-vivências.
Toda mulher pode romper o exílio. E outras vão nos acolher porque nós sabemos
umas das outras.
Comecei a escrever
este texto depois de pensar no meu exílio e hoje consigo perceber que estou em
movimento. Não nasci prá ficar estacionada. Não sinto tesão por gente
estacionada.
Digo isso depois de
engolir um marasmo enorme e por isso hoje sou mesmo insuportável. Sou
insuportável porque não caibo em mim, estou em estado de criação e de poesia o
tempo todo. Descobri que transbordo e aviso para as outras que o casamento
precisa ser reinventado desde o termo, que esse negócio de fundir e virar um, só
faz mesmo, com o tempo, é anular quem a gente é. Não posso falar pela
experiência de todas, mas eu, cá com meus percalços, arrisquei-me em exercitar
ser várias, experimentar a dimensão da minha existência e não justificar o que
opto quando o assunto é o MEU corpo.
Eu não me censuro
porque descobri que tenho direito de ser e de respeitar meus desejos, meus
sonhos. Eu atropelei por muito tempo os meus devires e por pouco não os matei: fiz
um curso de Direito por 9 anos querendo o tempo todo estudar teatro...e quando
saí, exigiram que eu carregasse só a culpa já que havia renunciado o diploma (“Tadinha,
ela não deu certo”). Abaixei muito a minha cabeça para um bando de homem dentro
e fora de casa. Acorcundei. Cedi o meu corpo como coisa aí pro mundo porque não
era senhora de nada, nem senhora de mim. Obedeci demais. Obedeci porque tive
medo. Obedeci porque “se não obedecer, apanha”. Mas a surra maior que a gente leva
é por obedecer demais. Eu fugi de casa, eu fugi do curso que não queria fazer,
eu fugi do casamento. Escapei, mas não ilesa. Nunca estamos ilesas. E faço arte
hoje pelas brechas que encontro para fugir das prisões desse cotidiano-mulher
que estica seu tapete de sangue vermelho-ancestral e eu quero uma história diferente
das que conheci.
Eu teria virado
nada se não descobrisse que eu sempre fui uma feminista (e isso gritou depois da
morte de minha mãe em 1996, quando a família achou que eu precisava de vigília
reforçada por ser a única mulher da casa: casar virgem, ter horário para chegar
e sair, fechar as pernas.) e que existem mulheres com histórias parecidas com a
minha...e que nem todas estão vivas (ou autorizadas) para um papo reto sobre
isso. Sim, nós deixamos de fazer muita coisa por sermos mulheres.
Casar e ter filhxs
foi para muitas a única possibilidade de destino.
Deixe-me escrever
um poema por dia e aos poucos vou sendo o que eu achar melhor prá mim.
Faço isso por minha filha, Eva.
A maneira mais
sincera do meu fazer artístico se dá porque eu me reconheço como uma mulher
feminista. Porque nada que eu faça no âmbito das artes anulará a mulher que
está inscrita em mim. E eu não faço arte pela metade: Meu corpo está para o meu
discurso. Minha pele está para a minha geografia fêmea. Minha voz está para as
vozes que calei e quando eu cantar estarei rompendo essa mordaça.
A gente só percebe
o quanto obedece quando tem a chance de respirar. Eu respiro neste aqui e agora,
na intocável impermanência deste instante (apesar do meu vício irrevogável
pelos cigarros de palha: herança daqui das Minas Gerais).
Este escape para
sentir o sabor da própria pele e a possibilidade de amar nosso corpo no mundo
como potência impossível e precária, insuportável e poética, nos dilata: somos
de novo paridas. Lançadas no mundo e encontramos umas nas outras molhos densos de
chaves que podem romper portas enguiçadas, insistentes vigílias, ferrolhos e
cárceres.
Por via das
dúvidas, sabemos chutar.
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[Thaiz Cantasini é licenciada em Artes Cênicas e mestranda em Poéticas e políticas da cena contemporânea pelo PPGAC UFOP. Compositora, mãe, poeta, performer e ativista feminista nos coletivos Ninfeias-Núcleo de Investigações Feministas e Coletivo Minas da Voz]
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